Esmeraldo Lopes
Uma
roda de gente com atenção curiosa pregada em um sujeito. O sujeito, no centro
dela, circulando em torno de uma mala, exaltado, gesticulando, jogando olhar
fulminante sobre os olhos de seus ouvintes-observadores. Estes, acompanhando o
movimento imóveis, esforçando-se para não perderem um gesto, uma palavra, um
movimento. E o sujeito escumando convicção, expõe e oferece o produto a preço
de miúdo, enquanto proclama com voz de som ritmado suas propriedades benfazejas:
“Cura mordida de surucucu, de jararaca, de cascavel, de cachorro doido, levanta
espinhela caída, desentorta língua de mulher faladeira, faz alegrar moça triste
e entusiasma preguiçoso pra trabalhar. Desentope intestino preso, desata nó de
tripa. Quem toma esse remédio tem todo mal curado, porque ele é ‘que nem Deus
por a mão’. Olhe aqui, também tenho rapa de xibio de raposa, serve pra
desentortar coluna, curar gripe, pra animar homem com tristeza no meio das
pernas. É tomando e a alegria chegando”. E começa a contar histórias
comprobatórias da eficácia do produto em oferecimento. Para mal do corpo,
oferecimento de beberagem, comprimido, casca ou raiz de pau, couro de bicho do
mato... Para fechamento de corpo contra faca, contra bala, para proteção contra
mal vindo de mau olhado, de feitiço, de inveja, de praga, de aporrinhamento de
espírito rúim, do coisa rúim, para curar safadeza de homem raparigueiro, o oferecimento de patuá,
de água benta benzida por padre de reza forte. No emendado do bafô da
conversa-ladainha, emenda o assunto que vinha falando com o atendimento de
freguês, pergunta o problema, faz comentário, recebe o dinheiro, passa troco, entrega
o produto, solta pilhéria, reinicia a propagandeação. E, no decorrer de horas, a
roda se mantém em cara inalterada, mas modificada a cada momento pelo entra e
sai de gente chegando, de gente saindo. Isso no sempre do existir nas feiras ou
em algum lugar de alguma rua, no tempo em que havia feira, ou até hoje, nos
lugares onde se junta o resto de gente carregada pelos costumes sobreviventes
do tempo em que existiam feiras.
As
feiras se acabaram. Não eram aglomerados de gente vendendo e comprando coisas. Eram
eventos social, cultural e comercial. Seus participantes faziam parte do mesmo
universo. Acompanheiravam-se pela companhia dos mesmos dilemas, desesperos, sofrimentos,
prazeres, das mesmas alegrias, satisfações, esperanças, dores. O vendedor de
panaceia sabia que seus produtos eram uma farsa, mas sabia também que
acalentava o desespero, enchia de esperança os que viviam pelo viver alimentado
pela fé. Da fé, filha da solidão, do desamparo, do receio de ruína, da falta de
sentido do mundo. Mas ele, o vendedor de panacéia, também partilha dessa fé,
por isso, embora farsante, não era impostor. Os compradores de panaceia botavam
pouca fé no que se lhes ofereciam, mas era um recurso, conheciam histórias que
afirmavam a vera de certos produtos assim, conheciam a força de rezas e, no
muito, era com o que se providenciavam nas necessidades do corpo e da alma. No
mais, ainda levavam, de graça, nos ouvidos, o som das palavras convictas do
vendedor de panaceia e assunto de conversa para o enchimento dos tempos vazios
de assunto.
Supermercados,
shopping centers, lojas de departamento, ocuparam os espaços das cidades. As
feiras de verdade, seus agentes, perderam assento, minguaram nos cantos. Novas
panacéias surgiram. Muitas surgiram sofisticadas. Algumas na forma de objeto, banhadas
em ouro-tambaque, arquitetadas em laboratórios pelo apurado de técnicas, de conhecimento
“científico”, colorindo a vida, o mundo, pelo disfarce de mentira-simulacro
estampadas em produtos-panacéia, em suas embalagens; outras, no formato de
conceitos, emprenhados por intelectuais das metrópoles e macaqueados e
disseminados no Brasil por “intelectuais” inférteis, a partir do terreno
estéril de academias-colônia.
As
panacéias-conceito, matérias-prima de charlatões engalanados com assento na
proa de universidades, de meios de comunicação, de partidos políticos, de
movimentos sociais, recebendo a denominação de professores, de líderes,
políticos, publicitários, jornalistas, cientistas... Esse tipo de vendedor de
panaceia se põe a falar pelo medido de palavras calculadas, através de rádios,
de jornais, de televisões ou em congressos e seminários, sempre propalando a
panacéia-conceito na moda. E a panacéia-conceito na moda, agora, educação. A
educação resolve tudo. Resolve problema de trânsito, de violência, de saúde, de
alimentação, de higiene... E no que a constatação de que escolarizados,
estudantes, capengam no básico das letras, das contas, no desempenho
intelectual, os vendedores da panaceia educação assaltam os cofres públicos
empurrando cursos de qualificação, de aperfeiçoamento em professores, propõem e
organizam seminários, congressos, palestras. E se armam com teorias
empacotadoras de realidades, disseminam métodos salvacionistas, saem escumando
palavras a que dão caráter mágico: fazeres, saberes, tradicionalidades,
facilitador, interatividade, diversidade, etnicidade, protagonistas,
subjetividade, construção, identidades... E pronunciam essas palavras com
suavidade melindrosa, treiteira, capciosa. Apropriam-se de trabalhos que
adquiriram êxitos, mas desenvolvidos à revelia deles, para depois de os
embalarem nas cores das teorias, das metodologias que vomitam, disseminarem
mundo afora. E ficam zoando em torno do conceito de educação, como mosca ao
redor de ponto de fedor sem excremento. Atentos à elevação da própria renda,
embarcam sem crítica e de bom grado em todo projeto que o governo lança,
desenvolvem o teatrinho e, no seguir, quando os resultados aparecem murchos,
desresponsabilizam-se, culpando o governo, ou o sistema, ou os “protagonistas”,
ou procuram justificativa exaltando casos pífios, isolados. Como são
especialistas em salivar verbo, fazem exposição e escrevem relatórios sobre os
trabalhos que desenvolveram apresentado uma situação inteiramente diferente da
que transcorreu, do resultado real, recheando-os com fotos de situações
montadas, com gráficos, com citação de frase de pensadores famosos, com
exemplos maximizados a respeitos de ocorrências mínimas. Para maximizar as
ocorrências mínimas, tiram de seus arsenais de verborragia a palavra avanço. E,
como mote, do início ao fim da fala ou do escrito, usam a expressão educação de
qualidade. Mestres em articulação, estão sempre a rebeirar os círculos de algum
centro de poder, sempre se propondo a desenvolver projetos, distribuindo
gentilezas, soltando simpatias, fugindo de confrontos. Ao contrário do vendedor
de panaceia nas feiras, os vendedores de panaceia-conceito, de panaceia
educação, não partilham dos mesmos dilemas, problemas, esperanças e sonhos
daqueles a quem dirigem suas ações, não acreditam no que dizem, não se responsabilizam
pelo que fazem. Têm como objetivo primeiro, segundo e terceiro, ganhar
dinheiro. Por isso digo: pelo dito, pelo muito que não foi dito, este tipo de
vendedor de panaceia nasce na farsa e sobrevive pela prática de impostura.
17/08-14
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